Calçada portuguesa: olhar o chão que pisamos
Não é um passeio o que propomos hoje. Não é olhar para o horizonte e espantarmo-nos com o que vemos. Ao invés, ponhamos os nossos olhos no chão e descubramos um mundo de geometrias e desenhos. Nas cidades e vilas portuguesas – mas não só – a calçada portuguesa é por si só motivo para calcorrearmos ruas e praças.
Quais ourives que trabalham a pedra como se de filigrana se tratasse, os calceteiros como que veneram a pedra, em posição de fazer partir os rins que só eles aguentam horas a fio. Com o martelo, vão criando padrões de branco e negro, desenhando golfinhos, pássaros ou caravelas.
São verdadeiras obras de arte que a maior parte das vezes calcorreamos sem as vermos. E bem merecem a nossa atenção. Ao nível do solo descubramos os pormenores e subindo a um ponto mais alto olhemos para o intrincado do padrão que transformou o espaço público das nossas terras em verdadeiras galerias de arte.
Começou em Lisboa, ganhou o país e espalhou-se pelo mundo.
Em Lisboa, sugere-se um passeio do Marquês de Pombal à Praça do Município para se apreciar o desenho da calçada à portuguesa. Mas verdadeiramente, perto da imensa maioria dos monumentos há excelentes exemplos destes bordados de pedra.
A história da calçada portuguesa
A primeira vez que em Portugal se calcetou uma rua foi já no início do século XVI quando D. Manuel I mandou que fosse assentado granito do Porto numa rua de Lisboa. É hoje comum afirmar-se que o fez para que o cortejo de Ganga, o famoso rinoceronte prenda de Afonso de Albuquerque ao rei, acompanhado por todo um vasto séquito, não sujasse as pessoas.
Contudo, os éditos reais são de 1498 e 1500 e o rinoceronte só foi oferecido ao rei em 1515, quando Afonso de Albuquerque o recebeu do rei de Cambia, que assim negava a construção de uma fortaleza em Diu mas mostrava apreço pelos presentes recebidos pela embaixada portuguesa. No Triunfo de 1515, o cortejo real incluiu o rinoceronte e também um elefante e terá calcorreado a rua calçada com granito nortenho.
Só já no século XIX é que se voltaria de novo a calcetar espaço público em Portugal. Foi no Castelo de São Jorge e a pedra utilizada foi o calcário. Por iniciativa do major-general Eusébio Pinheiro Furtado, governador de armas do castelo, prisioneiros fizeram em 1842 uma calçada com um padrão em ziguezague. O êxito foi de tal forma, que o mesmo militar ficou encarregue de calcetar o Rossio.
O engenheiro militar desenhou um padrão em onda que apelidou de Mar Largo e ao fim de 323 dias, o Rossio ganhou o aspeto que lhe conhecemos.
Com a casa de visitas de Lisboa assim decorada, e com o êxito que a novidade alcançou, a calçada foi ganhando espaço em Lisboa. Seguiram-se o Largo de Camões em 1867, o Príncipe Real em 1870, a Praça do Município em 1876, o Cais do Sodré em 1877, o Chiado em 1894 e a Avenida da Liberdade em 1879.
Todos quiseram ter a mesma novidade e os pavimentos com padrões em pedra calcária foram-se espalhando um pouco por toda a parte, chegando às colónias e mesmo ao Brasil, independente desde 1822. Hoje, encontramos calçada portuguesa da América Latina à Ásia, do Brasil a Macau, e ainda em várias cidades africanas.
Ao longo dos tempos, o trabalho artístico foi-se aprimorando e a especialização dos mestres calceteiros sendo cada vez maior. Mas os tempos não correm de feição para a calçada portuguesa, que tem vindo a ser substituída por pavimentos menos escorregadios. A história do vinho do Porto já desapareceu da Avenida dos Aliados, no Porto, e em Lisboa também se está a retirar calçada de muitos pontos. Mas ainda há muito para ver.
Na origem de tudo está o mosaico romano. Eusébio Pinheiro Furtado era um estudioso de Roma e um apreciador da arte do mosaico romano e foi daí que tirou a ideia para fazer o padrão com que embelezou o Castelo de São Jorge.
Calçada à portuguesa ou apenas portuguesa?
Já que estamos a falar de calçada, convém que percebamos se é à portuguesa ou apenas portuguesa. Pode-se falar das duas, sendo que quando o fazemos estamos a referirmo-nos a coisas distintas. A calçada à portuguesa é a mais antiga, feita com pedras de diferentes formas que os calceteiros ajustavam para as assentar. Aproveitavam-se então das diaclases do granito – ou seja, das fraturas que dividem as rochas em blocos e em relação às quais não se produziu deslocamento ou o deslocamento foi mínimo – para com o martelo fazerem pequenos ajustes.
Já a calçada portuguesa é feita com pedras cúbicas, normalizadas, e é a que mais frequentemente se faz nos últimos anos. São utilizadas normalmente pedras com um formato de 5×5 que são assentes de forma regular perpendicularmente ao lancil. Existe ainda uma terceira técnica conhecida como malhete, em que as pedras têm maior espaçamento entre si.
Tanto num como noutro caso, os calceteiros utilizam moldes para fazerem os desenhos e os padrões. Na calçada artística, a pedra é trabalhada para adquirir as formas necessárias à execução do desenho, normalmente a preto e branco. Mas há outros jogos de cores que também são utilizados, como o azul cinza e o amarelo, ou o castanho e o vermelho.
De início, os desenhos e padrões eram feitos pelos próprios mestres calceteiros, mas a partir dos anos 50, vários artistas foram convidados a desenhar motivos para a calçada. É o caso de Eduardo Nery, com trabalhos em Redondo e em Lisboa.
Agora, quando for conhecer uma cidade ou uma vila portuguesas, olhe também para o chão que pisa.