Monsaraz: o mistério do fresco do Bom e do Mau Juiz

Há em Monsaraz um fresco que encerra um mistério e que é caso único em Portugal: o Bom e o Mau Juiz é uma obra de arte inigualável em Portugal e de que ficámos a conhecer pistas para a sua interpretação.




Quando em 1958 uma intervenção nos antigos Paços do Concelho de Monsaraz revelou um fresco de dois painéis, a descoberta teve direito a primeiras páginas nos jornais. Percebeu-se imediatamente que se estava perante algo excepcional, mas cuja real importância só ficou verdadeiramente estabelecida quando os historiadores de arte se debruçaram sobre o achado e deram o veredito: o tema do fresco é não só um caso único em Portugal como apenas tem paralelo com a alegoria do bom e do mau governo que existe no Palazzo Pubblico da cidade italiana de Siena.

O fresco de Monsaraz tem sido estudado desde então e ganhou mesmo um justificado protagonismo na bela localidade alentejana, sendo peça principal do Museu do Fresco, no largo principal da vila.

O fresco é composto por dois paineis sobrepostos, representando o primeiro a justiça divina e o segundo a justiça terrena. É aqui que encontramos o bom e o mau juiz, numa alegoria à aplicação da justiça que tem muito que se lhe diga.

 

O primeiro mistério que o fresco apresentou aos historiadores foi o da sua data de execução. Os primeiros a debruçar-se sobre o assunto consideraram que era muito anterior ao que estudos posteriores vieram a demonstrar. Estamos perante uma peça de finais do século XV e hoje é quase consensual dar-lhe uma data precisa com uma história dentro. Mas já lá vamos.

A temática do fresco é caso único em Portugal
O bom e o mau juiz

Primeiro, a descrição. Em cima, temos Cristo Pantocrator numa cena divina de Juízo Final do apocalipse. No painel de baixo é representada a justiça terrena e o bom e o mau governo. À esquerda vemos o bom juiz, mimetizando a postura de Cristo e ladeado por dois anjos. O bom juiz olha diretamente para quem vê o fresco e com o dedo aponta para o acusador. Do lado esquerdo surge o mau juiz, de duas caras e com o diabo a pôr-lhe a mão no ombro e a partir a vara de justiça. Este juiz é ladeado por duas figuras. Uma corrompe-o com dinheiro, a outra com perdizes, numa simbologia muito utilizada então.

Ana Paula Amendoeira conta-nos a outra história por trás do fresco. A historiadora e atual diretora regional da Cultura do Alentejo contou o fresco e os seus mistérios aos participantes do Festival Terras sem Sombra, que no fim-de-semana passado visitou Monsaraz.

Um fresco explicado
A historiadora Ana Paula Amendoeira explica o fresco do Bom e do Mau Juiz

E é esta história que permite hoje aos investigadores apontar o ano de 1498 ou 1499 como o da data da execução do fresco, tendo sido seu mandante D. Jaime, 4º Duque de Bragança. Mas recuemos no tempo e nas personagens. Em 1483, reinava D. João II. A sua tentativa de fortalecer a Casa Real levou muitos nobres a insurgirem-se. Entre eles, estava D. Fernando II, 3º Duque de Bragança e cunhado do rei.

D. Fernando terá conspirado contra o rei e procurado apoios em Castela e foi por isso julgado, condenado à morte e executado em Évora a 20 de junho de 1483. A audiência onde se determinou a sentença – conta Ana Paula Amendoeira – decorreu numa sala que D. João II mandou decorar com painéis alusivos à lenda da justiça de Trajano.

Trajano, recordou a historiadora “ia para a guerra quando foi abordado por uma mulher que lhe pediu que fizesse justiça a um criminoso. O imperador romano disse-lhe que o faria quando regressasse, mas a mulher disse-lhe que poderia morrer e não se faria justiça, pelo que o julgamento se fez logo ali. Acontece que o criminoso era o próprio filho de Trajano e, mesmo assim, o imperador condenou-o à morte”.

Com os paineis, D. João II mostrava ao que ia. D. Fernando II não esteve presente na audiência mas um seu representante insurgiu-se contra o facto de o rei fazer parte dos 21 que compunham o tribunal, uma vez que era parte interessada.

Conhece-se a história. D. Fernando foi executado na Praça do Giraldo, em Évora, os bens da Casa de Bragança reverteram para a Coroa e os filhos do Duque, ainda crianças, foram levados para Espanha, onde cresceram.

Quando D. Manuel subiu ao trono anulou a sentença e devolveu terras e títulos à Casa de Bragança. D. Jaime, já adulto, regressa a Portugal já como Duque de Bragança e torna-se um dos favoritos do rei, de tal forma que este – já casado mas ainda sem descendência – o nomeia seu herdeiro.

Brasão da Casa de Bragança com as armas reais
O brasão de armas está esbatido mas é a chave da história

É isto que, afirma Ana Paula Amendoeira, permite aos historiadores avançar a tese de que o fresco terá sido pintado entre 1498 e 1499. Já fora da cercadura que rodeia os dois quadros do fresco, já muito desvanecido, é possível ver-se uma brasão de armas. Este brasão foi estudado e chegou-se à conclusão que é da Casa de Bragança mas com as armas do Reino de Portugal. Ora acontece que apenas em 1498 o rei deu esse privilégio ao ducado, quando fez uma viagem a Sevilha e antes de lhe nascer o primeiro filho.

D. Jaime, o 4º Duque de Bragança, pretendeu com este fresco reabilitar o seu pai, lembrando que a justiça nem sempre é cega, e fê-lo na sala de audiências de Monsaraz, por ter sido o alcaide desta localidade que o levou para Espanha no final do julgamento de Évora

O mistério está muito perto de ser explicado mas ainda há questões por resolver e que se colocam depois de se ter uma leitura fisico-química do fresco, e que foi dada aos participantes do festival por Milene Gil, investigadora do Projeto Hércules da Universidade Évora.

Esta investigadora afirmou que a maioria da representação do Bom e do Mau Juiz foi feita ainda com a argamassa fresca, mas que o mesmo não aconteceu com o brasão. Terá sido pintado posteriormente?

A história por trás do fresco de Monsaraz é hoje consensual, mas mais estudos físicos são necessários. Até lá, o mistério persiste.

Previous ArticleNext Article

This post has 6 Comments

6
  1. Que bela estória da História de Portugal! Uma Lição. Afinal, a aldeia-monumento de Monsaraz tem outros (re) encantos e segredos bem escondidos.

    Parabéns pelo artigo. Foi muito elucidativo.

    Continuação de boas viagens!

  2. Foi uma extraordinária aula de História, a que tivemos o privilégio de assistir, frente ao fresco do Bom e do Mau Juíz, em Monsaraz, proferida pela Dra. Ana Paula Amendoeira, no âmbito do Festival Terras sem Sombra. Obrigada, Jorge Montez, por ter sabido tão bem reproduzi-la, avivando-nos a memória. Bem haja!

  3. Obrigada, Jorge, gosto destas novidades da nossa história, vindo de ti ainda me prende mais o interesse. Muito obrigada por me teres oferecido este momento de ternura

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.