Em Sirince com Aysha

Sirince é uma aldeia de casas brancas com grandes janelas de madeira de quatro folhas, que cresce em socalcos em direção ao topo da montanha. Aqui não há outra cor nem nenhum edifício a destoar arquitetonicamente. Esta é uma aldeia preservada e, por isso, um grande centro de atração para turistas que pequenos autocarros despejam em golfadas todas as meias-horas.

E quase toda a vida de Ṣirince, perto de Selçuk, a cidade onde estão as ruínas de Éfeso, está organizada em função do dinheiro dos turistas. As primeiras ruas da povoação foram transformadas num souk com lojas de recordações, restaurantes e garrafeiras a alternar num padrão monótono. A maior parte dos visitantes fica-se por estas ruas e perde Ṣirince.

É quando se começam a vencer as primeiras rampas que a aldeia nos aparece na sua alvura. Muitas das casas estão degradadas, mas veem-se também bons exemplos de recuperações.

Subir os socalcos de Sirince

Caminhando em direção ao topo da aldeia o ambiente é subitamente outro. Já não temos o bulício de vendedores e turistas e o ritmo agora é o das estações, que esta continua a ser uma aldeia onde se pratica a agricultura e onde os olivais sobem encostas e se perdem no horizonte.

Sento-me numa varanda sobre a aldeia, protegido do sol por uma latada e gozo a calma acompanhado por um sumo natural de romã. Lá embaixo, turistas e vendedores devem continuar o seu jogo. Mas já não se veem nem se sentem. Cá em cima, a aldeia parece outra. Olho para as casas em socalco, viradas a sul. O que se ouve agora são os cães que ladram ao longe e o zurrar de um burro, um som que não ouvia há demasiado tempo.

Ṣirince é um belo lugar para se passar umas horas, depois de fugir à autêntica ratoeira para turistas que são as primeiras ruas.

Quando Sirince mudou de nome

Estou certo de que em 1926 essas ratoeiras não existiam e quem chegava de Selçuk podia logo apreciar o casario de grandes janelas. Gostaria que tivesse sido essa visão a inspirar o governador de Izmir a mudar o nome da aldeia, mas o mais certo é nunca ter ido à pequena povoação e ter cedido a petições ou influências para concordar em apenas mudar a primeira letra do nome. A partir de 1926 o nome da aldeia passou a ser Ṣirince em vez de Çirince.

Ao alterar apenas uma letra – de Ç para Ṣ – o governador mudou radicalmente o sentido do nome e, quem sabe, o próprio destino da povoação.

É que Çirince quer dizer feio em turco e Ṣirince é a palavra turca para prazenteira, agradável. E assim, por decreto e em apenas um momento, uma aldeia deixou de ser feia para se tornar prazenteira.

E fazendo jus ao seu novo nome, em Ṣirince deixo-me levar pelas ruas do casario do século XIX. Estamos ao princípio da tarde e o calor aperta. Estou praticamente sozinho. Um trator passa por mim com a velocidade só permitida a quem faz o caminho durante toda uma vida. Dobro uma esquina e encontro um rapaz de uns cinco anos que insiste com um cachorro em demonstrar quem é o dono, tentando obrigá-lo a sentar-se. Mas fá-lo como qualquer rapaz de cinco anos o faria e o pobre do bicho está verdadeiramente aflito, pelo que aproveita a distração do miúdo ao ver-me para se colocar a uma distância confortável até que passe o desígnio controlador do seu dono.

Aysha fala comigo

Já vejo os telhados da maioria do casario. Estou numa das últimas ruas de Ṣirince. Sentada numa pedra, uma idosa parece estar à espera de nada. Apenas a gozar uns minutos de descanso. Com os cabelos cobertos pelo yazma de padrões floridos, parece não sentir o calor debaixo da camisola e da saia pesadas.

Quando passo por ela inclino brevemente a cabeça em cumprimento. Simpático, mas distante, que assim não firo suscetibilidades. Cumprimento a um ou dois metros de distância e sigo o meu caminho quando ouço num francês límpido:

— Bom dia, senhor, posso convidá-lo para beber um chá em minha casa?

Claro que sim. Não resisto quando a abordagem é feita com subtileza ou de forma diferente. Sabia ao que ia, mas também não podia perder a oportunidade de ver por dentro uma das casas de Sirince.

Aysha – saberei o seu nome dentro de momentos – leva-me um pouco mais além na rua e abre um portão de metal verde que dá para um pequeno pátio com uma latada que pouco mais é do que um projeto. À esquerda um anexo agrícola térreo e em frente ao portão uma escada que sobe ao primeiro andar e por onde a minha anfitriã me leva.

Dentro de uma casa de Sirince

Descalçamo-nos ao entrar em casa. A habitação é humilde, mas os tapetes conseguem torná-la confortável. Há carpetes no chão e também nas paredes. São, aliás, a quase exclusiva decoração da casa com a função óbvia de a tornar menos permeável às condições climatéricas.

Entro e à minha esquerda tenho uma cozinha de que vejo apenas o fogão e um frigorífico que parece necessitar de reforma. Aysha mostra-me o caminho e sobe a estreita escada de madeira que corre direito a uma janela de onde se vê toda a aldeia. Anda, diz-me, subentendendo que terei tempo depois para olhar para as vistas.

Cá em cima o cenário não é muito diferente. A escada desemboca num pequeno átrio que dá para uma sala com dois sofás de três lugares virados um para o outro. Aysha estende-me a mão num firme aperto e apresenta-se.

— Sou a Aysha, como te chamas? E de onde vens?

Respondo-lhe no meu melhor francês enferrujado.

— Senta-te. Vou buscar o chá — diz-me, enquanto desaparece para o fundo da divisão, separada desta sala por dois tapetes. Julgo que será o seu quarto e que terá aí tudo o que necessita para fazer a infusão.

Um chá com Aysha

Sozinho na sala, aproveito para um olhar mais atento. Em nichos de parede estão fotografias. Há um retrato de uma Aysha muito mais nova ao lado de um homem já a perder cabelo, mas com um farfalhudo bigode. A foto onde só se veem os bustos tem os contornos esfumados e as cores muito saturadas. Num outro nicho vê-se o mesmo casal em momentos registados a preto-e-branco: num grupo de casamento; ao lado de um outro casal recém-casado; e ainda numa foto de família onde já se veem várias crianças.

Aysha chega com o chá no momento em que me sento, com um sentido de tempo que parece ter sido encenado. Ou então estava só à espera de ouvir as molas do sofá a queixarem-se do meu peso. Digo-lhe que tem ali umas fotos muito bonitas.

Comunicar em língua nenhuma

É então que percebo que Aysha não sabe verdadeiramente falar francês. Aliás, não sabe, de todo, falar francês. Aprendeu as frases necessárias para abordar turistas, mas não foi mais além. Mas isso não é um problema quando chega o momento de fazer sala. Tem aí umas fotos muito bonitas, tinha-lhe eu dito, apontando para as molduras.

É a deixa para Aysha me falar de toda a sua família. Tem três filhas que foram viver para Selçuk, a cidade mais próxima. Todas casaram e têm agora filhos. Uma das suas netas acabou de lhe dar o primeiro bisneto. Aysha está agora sozinha em Ṣirince com o marido, que está na lide do campo.

Deixou de trabalhar desde que foi operada ao coração e agora as colchas e fronhas de linho são feitas pelas filhas lá na cidade, que este é verdadeiramente um negócio de família. E foi para vender os trabalhos de linho que Aysha me trouxe a sua casa. Quando os poisa no seu colo explico-lhe que não lhe vou comprar. A minha negativa é bem recebida. Aysha ainda me mostra mais duas ou três peças, mas depois concentra-se em continuar a história da sua família e diz-me para acabar o chá com calma.

Assim o faço. Falo-lhe também da Fátima e do Miguel. Conversamos sem verdadeiramente falarmos. Dizemos as palavras essenciais, misturamos turco e francês, utilizamos gestos e sorrisos.

Aysha espera que eu termine o chá e levanta-se, estende-me a mão e agradece-me em francês. Respondo-lhe em turco. Descemos as escadas e saímos para a luz do dia. Aysha fica a acenar a meio da escada quando fecho o portão verde de metal e saio do seu mundo.

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