Eudósia: a refugiada galega que Castro Laboreiro escondeu
Esta é a história de Eudósia, uma refugiada da Guerra de Espanha que encontrou porto seguro em Castro Laboreiro. É a história da jovem professora de 19 anos e dos perigos que as gentes castrejas passaram para a esconder.
A 18 de julho de 1936 estala a Guerra Civil Espanhola. Na aldeia galega de Fradalvite, de um dia para o outro amigos tornam-se inimigos e o medo impera. Era aqui que vivia a jovem professora Eudósia Lorenzo com os seus pais, Agustín e Basilisa. No dia em que recebe uma ameaça contra a família senão pagar 50.000 pesetas aos falangistas, Agustín decide dar o salto para Portugal.
Anos mais tarde, Eudósia escreveria ao filho: “Partimos pela montanha até ao rio que faz a fronteira entre Espanha e Portugal; lembro-me que quando o atravessei, rolei pela erva cheia de alegria. Foi um dos melhores momentos da minha vida; com os meus 19 anos, temia uma morte sem razão; imaginava o meu corpo devorado pelos vermes; o que mais temia era ser violada por esses brutos analfabetos; em segredo, levava sempre um canivete (que ainda tenho) para cortar as veias do braço esquerdo antes de cair nas suas mãos”.
“Tiveram que fugir, senão os inimigos faziam-lhes o que fizeram a outros. Iam chaciná-los… um escândalo! Foi a guerra mais escandalosa do mundo inteiro”. Delfina Fernandes, 96 anos, não esconde a indignação quando lembra aqueles tempos.
Sentada à sombra na sua casa na branda do Queimadelo, em Castro Laboreiro, Delfina Fernandes conta a história que viveu por dentro. É que ela foi amiga de Eudósia, a jovem e bela professora galega que deixou marca nas gentes castrejas.
Esta é uma história que, apesar de já ter 80 anos, é contada na primeira pessoa. Delfina tinha então 13 anos quando na inverneira de Alagoa vê chegar Eudósia e os pais. Agustín era conhecido por aquelas bandas, por trabalhar como capador entre a Galiza e Portugal, e conhecia os caminhos. “Eles passaram a fronteira em Entrimo e depois vieram por Janeiro de Baixo, até chegarem a Alagoa”.
“Eudósia ensinou-me a ler”
“Nos primeiros três meses, Eudósia dormiu comigo e com a minha irmã na mesma cama. Os pais dormiam numa casa onde estavam os mantimentos. De dia vinham connosco. Comiam da sua comida, mas vinham connosco”.
Naqueles tempos o clima era mais inclemente e os caminhos difíceis, pelo que as gentes de Castro Laboreiro baixavam às inverneiras mais resguardadas em dezembro, retornando para as brandas logo em março.
Delfina Fernandes era muito jovem quando conheceu Eudósia, mas as memórias daqueles tempos ficaram-lhe gravadas para sempre. E, por isso, lembra-se bem de que – quando se mudaram para branda – Eudósia e os pais seguiram para outro lugar. “Houve uma mulher (Antónia Rendeiro de Adorna) que os animou e que lhes disse para irem para o Rodeiro: ‘venham para o Rodeiro porque eu tenho lá um esconderijo que ninguém sabe dele’. Nós éramos todos um e encobrimo-los e de que maneira!.
Nas palavras, nos olhos e nos gestos de Delfina está ainda bem vivo o orgulho que sente por a sua gente – “éramos todos um!” – ter escondido a família refugiada galega.
O esconderijo de que fala ainda hoje é visível, numa casa de pedra da branda do Rodeiro facilmente identificável por ter uma alminha numa esquina. Agora em ruínas, percebe-se o cubículo debaixo da cozinha onde sempre que havia novidade a família se enfiava.
Eudósia e os seus pais conseguiram viver escondidos durante 3 anos entre as gentes de Castro Laboreiro. Durante esse tempo, a jovem professora ensinou muitas das crianças da aldeia a ler e a contar, e por isso foi o seu nome que perdurou na memória coletiva desses lugares. “Foi ela que me ensinou a ler as parcelas e a contar. Até ao milhão aprendi e foi ela que me ensinou. Mas as primeiras letras ensinou-mas meu pai”.
Eudósia e a mãe adotaram os costumes da terra e vestiam o fato castrejo. Numa carta ao seu filho, Paul Feron, a professora recorda uma vez em que a polícia entrou na casa onde estavam refugiados e a sua mãe não teve tempo de se esconder. Estava vestida de castreja e Antónia Rendeiro de Adorna disse que era muda, pelo que não levantou suspeitas.
A família galega recebeu guarida na casa de António Domingos Rendeiro durante o resto do tempo que se mantiveram em Castro Laboreiro. Quer a polícia de Franco quer a PIDE (então PVDE – Polícia de Vigilância e Defesa do Estado) andavam no seu encalço desde cedo.
No radar da PIDE
Num ofício datado de 18 de novembro de 1937, o chefe do posto de Peso (Melgaço) pede a captura da família, “elementos propagandistas das teorias comunistas”. Nessa altura, a polícia política tinha perdido o rasto de Eudósia e seus pais, que sempre permaneceram em Castro Laboreiro. Diz o documento que teriam seguido para Arcos de Valdevez e daí “para destino desconhecido”.
Mas rapidamente os Lorenzo voltam ao radar da PIDE.
“Chegou a ocasião em que lá houve um gajo daqui de Castro que teve problemas com a polícia e foi quando a polícia veio saber deles”, lembra Delfina Fernandes. A denúncia é feita à polícia e a GNR e a PIDE começam a rondar o Rodeiro mais persistentemente.
“No Rodeiro, logar que me foi indicado, como certo, o paradeiro de EUDOZIA e seus paes, foi-me bem difícil (…) Tinha a informação de que estariam refugiados numa mina, no rio que margina este logar ou na casa de António Domingos Rendeiro, num esconderijo perto da lareira”. Assim começa o relatório da captura de Eudósia. A casa foi medida por fora e por dentro e nada de anormal foi encontrado.
No documento, diz-se que os donos da casa foram levados sob prisão até ao rio, mas nada mais se fala sobre os métodos de interrogatório. Delfina não tem dúvidas: “Agarraram-na e levaram-na ao rio, fizeram mil misérias dela, mas ela não os descobriu”.
Os maus tratos continuaram em casa. Eudósia e os seus pais estavam escondidos por baixo da cozinha e quando perceberam que os seus benfeitores estavam a ser torturados, resolveram agir. “A Eudósia foi a primeira a sair e disse: ‘aqui estamos ao seu dispor, deixem a mulher que ela não tem culpa nenhuma'”.
Voltemos ao relatório da captura que, como sempre, omite os métodos utilizados para conseguir as informações: “fiz retirar de um canto da lareira enormes atados de urzes e um pesadíssimo banco, tudo isto assente num chão de lages.
“Ao pedir um ferro ou martelo, para vêr se, em alguma destas obtia o ôco, fui supreendido com o levantamento muito lento de uma destas, e de vozes que imploravam clemência:
“Ali estavam, como sepultados num túmulo, cobertos de palha, Agustín Lorenzo Puga, Basilisa Diz e Eudózia Lorenzo Diz que, a muito custo, foram saindo, por um orifício relativamente pequeno, deixando vêr nos seus rostos traços de grande sofrimento”.
Ainda criança, Manuel José Domingues assistiu à captura, sendo o seu testemunho contado no artigo Memória da guerra civil no norte de Portugal, de Sérgio Domingues: “Quando o guarda a quis prender, ela pediu-lhe com convicção para se afastar. Eu era pequeno e estava no interior da casa e ela e o guarda falavam à porta. Ela, com o seu jeito gracioso, disse-lhe: ‘Oiça-me, por favor. Mate-me mas não me prenda. Eu perdoo-lhe pela minha morte, não será nenhum crime'”.
“O polícia encantou-se dela”
Delfina Fernandes e Manuel José Domingues concordam numa coisa: o polícia “encantou-se de Eudósia”, logo no momento da captura ou durante o caminho a pé até Melgaço. A verdade é que a jovem professora e os seus pais escaparam ao normal destino dos refugiados espanhóis em Portugal que, quando apanhados, eram entregues na fronteira à Guardia Civil ou às milícias fascistas e muitos fuzilados.
Eudósia, Agustín e Basilisa ficaram em Melgaço sob custódia, a aguardar o evoluir da situação. “Eles tinham cá muitos amigos e havia muitas pessoas a pedir por ela. Em Melgaço havia um comunista – contra o Salazar e contra o Franco -, homem estudado, o Ferreira da Silva, que lhe tratou de tudo”, lembra Delfina.
As mulheres aguardaram no hospital e o pai recolheu à prisão, hoje o Solar do Alvarinho. De Lisboa veio a boa notícia. O Cônsul francês tinha sabido da história e dava-lhes o salvo-conduto para irem para Marrocos, então colónia de França, bastando para tanto cada um levar duas fotografias.
A 18 de agosto de 1938, Eudósia e a família partiram para Casablanca a bordo do vapor “Jamaíque”.
Delfina e Eudósia voltaram a encontrar-se muitas décadas depois. A galega nunca esqueceu as gentes de Castro Laboreiro a quem devia a vida e a castreja manteve sempre viva a memória da jovem e bela professora que lhe ensinou matemática.
As gentes castrejas acolheram-na durante os anos negros da guerra civil de Espanha e durante a ditadura de Salazar. Em Castro Laboreiro, a galega fez jus ao seu nome, do grego Eudoxia: a que é bem vista.
Eudósia Lorenzo morreu na ilha da Reunião a 16 de dezembro de 2004, aos 87 anos.
Extraordinária reportagem !
Felicitações amistosas!
Obrigado Alice. Volte sempre!
Extraordinaria historia, coma outras moitas que hai que contar
Óptima narrative de um dos muitos casos passados nessa tristíssima época da guerra Civil Espanhola e da censura imposta pelo governo Salazarista, que também apoiou o falangista Franco, embora o fizesse camuflado. Esse caso teve um fim feliz como muitos outros protagunisados por homens e mulheres portugueses em auxílio de terceiros e sem fins lucrativos. Dos mais conhecidos foram os dos judeus assistidos por Aristides Mendes.
Nasci em 1937 e em 1942 ouvi e guardo na minha memória, a minha Mãe contar que na missa, de um dos domingos, ouviu o relato corajoso de um padre franciscano espanhol afirmar, em público e no púlpito da Igreja Matriz de Vila do Conde: ” Acabo de chegar, fugido da Galiza e de Espanha, onde se matam espanhóis bons, ricos e pobres, como quem mata porcos em matadouros, mas estes em vias públicas, praças praceta e nas suas próprias casas, não respeitando ninguém….’ mais tarde soube-se que foi apertado pela polícia política e pela própria igreja portuguêsa via Lisboa, pela ousadia de proferir esse relato verdadeiro do que se passáva na guerra fratricida além fronteiras. Nessa época era mais visível o que se passava na II GUERRA MUNDIAL, pois ouvíamos as notícias através da BBC directamente de Londres e em som baixo, pois era sancionado pela lei a sua escuta. Portugal vivia a ditadura Salazarísta e Espanha entrava na ditadura Franquísta imortalizada por Picasso com “GUERNICA”.
. Desculpem por ter-me alongado neste comentário. Bom fim de semana. Ao dispor.
Obrigado pelo seu testemunho, José Manuel. Bem haja!
Ola. Eu son Dolores, veciña de Chaus do Limia. Coñecín a Eudosia a comezos dos anos setenta cando veu de vacacións coa súa familia. Logo eu fun estudar a Ourense e xa non a volvín ver ata que, xa viúva, fixo a súa casa entre os Chaus e Fradalvite, na Churiza, onde pasou longas tempadas gozando da bela paisaxe dos arredores e falando coa xente dos dous lugares. Lembro especialmente a súa agradable conversa, Eudosia era unha extraordinaria comunicadora, o tempo a seu carón pasaba sen te decatares. Na casa da súa afillada, que tamén se chama Eudosia, tía política miña, escoiteina moitas veces, engaiolada con calquera tema de conversación que saíse a colación. O feito de participar neste foro é simplemente para deixar constancia do respeto e admiración que sentía por esta extraordinaria persoa, acrecentado a medida que se foi coñecendo a triste historia que a obrigou a ela e a tanta xente a ter que fuxir dos seus fogares e iniciar unha viaxe moitas veces sen retorno. Todo o meu cariño