Caretos de Podence são tradição única e a não perder
“Quando pomos a máscara transfiguramo-nos porque ninguém nos reconhece”. Luís Filipe Costa é um homem ponderado e reservado, mas no Entrudo solta o selvagem que há dentro de si. Com a máscara de latão, o colorido fato de franjas e os chocalhos, pula, corre, mete-se com as raparigas e parece ganhar fogo. Filipe é um dos caretos de Podence.
Sem aviso prévio, em grupo ou isolados, os caretos começam a correr pelo declive da aldeia, do adro da igreja até ao terreiro à saída, provocando os homens e procurando as raparigas. Quando apanham uma a jeito, “chocalham-na”. A ela abraçados, movem as ancas ritmadamente, fazendo com que os chocalhos que trazem à cintura batam no corpo da mulher. Nas sortidas dos chocalheiros ninguém está a salvo.
O som dos chocalhos ecoa por toda a aldeia. No Domingo Gordo e na Terça-feira de Carnaval são às dezenas os homens que se tranformam em figuras demoníacas, repetindo um ritual que se perde na noite dos tempos. Esta é a mais genuína das festividades portuguesas e desde 2017 integra a lista de Património Nacional Imaterial, tendo dois anos depois sido declarada Património Imaterial da Humanidade.
Podence transfigura-se por estes dias. Tasquinhas surgem nos espaços mais improváveis, os que estão fora a ganhar a vida escolhem o Carnaval para por uns dias regressar à terra, milhares de forasteiros invadem as ruas da aldeia. A pacatez de todos os dias dá lugar a uma animação que não se encontra noutro lugar.
Um Careto que estudou o fenómenoLuís Filipe Costa é de uma geração que cresceu com os caretos. Foi facanico e hoje é artesão de máscaras, tendo reintroduzido a de couro. Mas Filipe Costa é também um estudioso e os caretos de Podence foram o tema da sua tese de mestrado em Arte.
“Os mais velhos dizem que isto já vem desde o princípio do mundo e para encontrarmos as origens dos caretos temos que procurar paralelismos com outras festas que tenham as mesmas caraterísticas: que sejam no inverno,, tenham máscaras, sejam com atores licensiosos e onde se cometam excessos de comida e bebida e de contacto entre rapazes e mulheres. Encontramos na história esses paralelismos e festas que estarão na génese dos caretos, como as Saturnais, as festas em honra do deus Pã, ou as celtas em honra de Cernurus, o deus chifrudo. Em todas elas o homem procurava transfigurar-se num ser animal como aqui”.
Os caretos de Podence são a mais conhecida das festas dos rapazes transmontanas. Ritos de iniciação e de recomeço, estão fundamentalmente ligados ao solstício de inverno e multiplicam-se um pouco por toda a Terra Fria fundamentalmente entre o Natal e o Ano Novo. Mas não aqui. Em Podence, é no Carnaval que os rapazes se juntam para fazer a vida negra a quem encontram. Aos homens, dão com o rabo que lhes cai do capuz. Se encontram uma mulher chocalham-na, seja ela quem for. Só as grávidas ou as que têm crianças de colo escapam.
Hoje em dia, o ritual é apenas festivo e o comportamento dos diabretes apenas deixa um sorriso naqueles que deles são alvo. Mas nem sempre foi assim e é fácil encontrar quem deles tivesse medo em criança. Porque até ao ressurgimento da tradição, os caretos eram muito mal comportados e não se faziam rogados em trepar paredes e invadir casas para chocalhar as mulheres solteiras.
Então, para se protegerem, as mulheres tinham de se refugiar no adro da igreja onde os caretos não entram. Também apenas eram chocalhadas as solteiras, desde que não estivessem de luto. Hoje tudo é diferente. Não são apenas os rapazes que vestem o traje e se transfiguram, homens feitos também o fazem, e há mesmo Facanitos, as crianças que já aprendem as tropelias.
O careto é uma figura demoníaca. O traje é feito de colchas franjadas. Hoje em dia, é o amarelo, o vermelho e o verde que imperam, mas antigamente as cores eram as que se encontravam em casa. Ao contrário de outros lugares, em Podence as máscaras são rudimentares, de nariz pontiagudo e feitas de latão ou couro. Aqui, é o preto e o vermelho que predominam. O traje é completo por duas bandoleiras com campainhas e por uma rodada de chocalhos à cintura. Os caretos apoiam-se em paus ou bengalas, que os ajudam nos pulos e correrias.
A Terça-Feira de Carnaval é o dia grande das festividades, com a procissão dos caretos a percorrer a rua principal da aldeia e com a impressionante queima do Entrudo, um careto gigante. Mas já no Domingo Gordo os caretos andam à solta em Podence e na noite de segunda-feira é tempo dos pregões casamenteiros, da queima do Diabo e da preparação da forte queimada, de aguardente e frutos. Esta é a noite que para muitos se prolonga até o sol já ir alto no horizonte, este é o tempo de celebrar amizades.
Caretos de Podence estiveram à beira da extinção
A origem dos Caretos de Podence esfuma-se na bruma dos tempos. António Carneiro, presidente da Casa do Careto, lembra que esta é uma tradição “acima de tudo pagã que remonta ao tempo dos celtas enquadrada em manifestações agrárias”.
Quem for agora a Podence não imagina que o Entrudo Chocalheiro esteve moribundo. António Carneiro lembra que “a tradição esteve quase extinta nos anos 60 e 70, fundamentalmente por causa da emigração e da guerra colonial”.
Quando em 1976 Noémia Delgado foi a Terras de Cavaleiros para filmar “Máscaras” apenas sobreviviam três trajes em Podence. A sua presença foi fundamental para que os jovens da terra percebessem que a sua tradição era um tesouro a ser preservado. E assim nasceu o grupo de caretos e, mais tarde, a Associação dos Caretos de Podence, que tomou em mãos a organização do Entrudo Chocalheiro e montou, na antiga escola primária, a Casa do Careto, um pequeno museu que celebra este costume único.
“Tivemos a sorte de ela aparecer em Podence. Os mais jovens puderam fazer o seu caminho e hoje é o que se vê, com 80 a 100 caretos nas festividades”.
Todos os anos, entre o Domingo Gordo e a terça-feira de Carnaval, a aldeia de Podence transfigura-se. A festa dos rapazes atrai uma multidão cada vez maior às terras frias de Macedo de Cavaleiros.
Excelente artigo. Agradeço que corrijam a gralha “percebecem”.
Obrigado. Pelas palavras e pela atenção. Corrigido!