Marcos Viana: quando a reciclagem é uma forma de arte
Marcos Viana olha para o pedaço de madeira que tem à sua frente. A tábua é visivelmente antiga, com a tinta vermelha a descascar e a deixar espreitar um verde que ali estivera em primeiro lugar. Já foi parte de um barco e agora faz parte do espólio do artista artesão. “Este é um objeto com vida e isso é que o torna fantástico. Quem pintou este vermelho não deve ter sido quem pintou o verde. É esta história que me entusiasma”. No seu ateliê de Vila Praia de Âncora, Caminha, faz a reciclagem de materiais e transforma-os em objetos de arte.
A tábua de madeira ainda não tem destino, mas poderá vir a fazer parte de uma nova peça que integrará a coleção do artista. Sob a marca Spyral Art by Marcos Viana, o artista pega em materiais díspares e muitas vezes desgarrados e com as suas mãos ajuda-os a tornarem-se em paisagens costeiras, peixes imaginários ou aquilo que a inspiração do momento determinar e o objeto exigir.
Cabe tudo em 43 metros quadrados
Quem pela primeira vez entra no seu ateliê de 43 metros quadrados é assoberbado por uma quantidade inusitada de informação. Não há, literalmente, um recanto que esteja desaproveitado. Há muitas ferramentas e tudo o resto é aquilo que para a maioria de nós tem um nome: lixo! Só que a extrema organização e o esmero na limpeza deixam perceber que este é um local de trabalho sério e intenso.
Na parede há uma cadeira pendurada, caixas e mais caixas, expositores com madeiras velhas, antigos manequins, tudo com uma organização dificilmente entendível mas que salta à vista. "Isto está tudo muito organizado, mas de uma forma que apenas faz sentido na minha cabeça. Tento ter a maioria do material à mostra para que quando estou a fazer uma peça me baste olhar para perceber o que nela colocar".
Há madeiras, ferrarias e uma infinidade de outros materiais à espera de uso. E há também o cantinho VIP, onde são guardadas as suas melhores matérias-primas. Estas últimas têm algo em comum: o mar. São tábuas que pertenceram a velhas embarcações tradicionais ou pedaços de madeira curtidos pelo sal e moldados pela força do oceano. "Quando precisar de uma base já tenho estas aqui, que estão prontas a ser utilizadas. Foi o mar que as desbastou", diz enquanto passa as mãos com um carinho indisfarçado por um pedaço de madeira.
"Percebo o potencial do objeto"
Depois das marés vivas, Marcos Viana percorre a praia à procura do que o mar lhe trouxe. Bóias, madeiras, cordas... qualquer material que ao avistar lhe deixe perceber o potencial. Pode ser uma textura ou uma cor, até uma forma. "Há muitas pessoas que olham para um material e vêem logo o objeto que farão a partir dali. É um caminho legítimo, mas não é o meu. Quando trago um objeto não faço a mínima ideia qual o destino que lhe vou dar, mas sei reconhecer o seu potencial".
Enquanto procura matérias-primas para o seu trabalho, aproveita para limpar o areal. "Trago tudo, isqueiros e outra porcaria. É impressionante o lixo que se encontra na praia e mesmo assim as nossas nem são tão más como outras que conheço". O lixo marinho é uma das suas preocupações e por isso segue interessado o que se vai fazendo em Portugal e no mundo para combater este flagelo.
A base do seu trabalho de reciclagem são tábuas marítimas, madeiras utilizadas em embarcações que foram abandonadas ou reparadas. "Tenho de ir a Espanha à procura do material porque a nossa frota de pesca tradicional praticamente deixou de existir". Esta é uma mágoa de quem é neto de pescador, chegou a ir ao mar e viveu entre as comunidades piscatórias de Matosinhos e de Leça da Palmeira. Por isso, sempre que o vento está de feição, arriba à costa espanhola à procura de tesouros por outros abandonados.
As madeiras de cores outrora vivas e hoje descascadas estimulam-lhe a imaginação. "Quando precisar de um céu tenho esta aqui" - diz, retirando do monte uma tábua onde o azul ainda é intenso mas que foi ganhando matizes que a tornam especial. "Podia pegar nas tábuas e pintá-las, o que também era legítimo, mas a minha arte passa pela leitura dos materiais", saber interpretá-los e aproveitar as suas cambiantes.
Voltemos ao ateliê do artesão artista. Quem olha para a quantidade de material e para a organização pensa que Marcos Viana está ali há pelo menos uma década, mas a verdade é que se mudou em 2014. Só que desde sempre viu algo mais do que todos nós nos objetos que aparentemente já não têm préstimo. Há algumas matérias primas que o acompanham há muitos e bons anos e que qualquer dia entrarão numa qualquer nova obra.
"Esta é uma mania que tenho desde sempre. Fui guardando coisas que encontrava e que achava interessantes, mesmo sem saber que uso lhes iria dar". É assim que tem mecanismos de relojoaria, chumbos de pesca, caixilharia, grelhas de exaustores..." A lista é extensa e tem praticamente tudo o que a imaginação possa conceber.
"Não sou um carpinteiro mas percebo de carpintaria, não sou eletricista mas percebo de eletricidade... Sei fazer um pouco de tudo". Não se pense porém que Marcos Viana é um autodidata. Tirou o curso na Escola Artística e Profissional Árvore, onde aprendeu desenho técnico e artístico, e - posteriormente - o curso de técnico de decoração e restauro de mobiliário. É por isso que trata a madeira por tu sem, uma vez mais, ser um marceneiro.
Mas o gosto vem de trás. Marcos Viana ainda guarda no seu ateliê um barco à vela que fez quando era miúdo e que até um pequeno motor tinha para navegar nas águas calmas do lago. "O mastro era uma caneta e o motor é de um carrinho que encontrei no lixo... Como vê, isto já dura há muitos anos". É na costa que o artesão artista encontra a maioria da sua matéria-prima, mas também no lixo urbano se encontram muitas coisas que serão aproveitadas. "Já percebo quando é uma limpeza de garagem ou a mudança de uma casa de emigrantes. É sempre diferente".
Em 2015 meteu-se nesta aventura de reciclar materiais e com eles fazer arte e não se arrepende. "A aceitação foi muito grande logo desde o princípio porque as pessoas percebem que este é um projeto diferente e muito pensado".
Marcos Viana tem agora o seu projeto Maritimus exposto na Galiza, no Museo Marea, o museu da memória marítima de Porto do Son. São paisagens costeiras, aldeias, fábricas conserveiras e faróis, escarpas impossíveis, tudo trabalhado com atenção ao pormenor.