Luís Pedras, o oleiro das roncas de Elvas

Na olaria de Luís Pedras o barro ganha formas ancestrais. As roncas que no Natal ecoam nas ruas de Elvas são moldadas pelas mãos gentis do oleiro, que assim reavivou uma tradição de estranhos sons ritmados quase perdidos.




Este é um som caraterístico da cidade raiana. Pelos natais, homens e mulheres juntam-se para entoar cânticos da época. Ao invés de violas, fazem-se acompanhar pelas roncas, instrumentos feitos de barro, pele de borrego e uma cana. Com as mãos húmidas friccionam a cana e o som nasce, mais agudo nas mais pequenas, surdo e grave nas maiores.

As origens deste menbranofone de fricção (os tambores são de percussão) são ancestrais e estarão em África. Não se sabe como é que as roncas chegaram a Elvas, mas hoje são um símbolo identitário da cidade, e muito por culpa de um oleiro que não deixou morrer a tradição.

“Pelo Natal chego a fazer mais de mil roncas”. Na sua olaria no castelo de Elvas, Luís Pedras faz girar a roda, molha as mãos e com gestos a um tempo firmes e leves faz a pela ganhar forma, elevando-se num cântaro que mais tarde será fechado com pele de borrego.

Quando perdeu a profissão encontrou o ofício

os trabalhos de Luís Pedras denotam influências dos locais por onde passou
O yin e o yang numa ronca de Elvas

Luís Pedras não é um oleiro tradicional que tenha aprendido a arte em moço. Despachante oficial, como mais de um milhar dos seus conterrâneos viu-se em 1991 sem profissão quando foram abolidas as fronteiras terrestres. Já tinha o gosto pelo barro e decidiu aprender o ofício. “Aprendi a arte há 23 anos atrás. Tudo é possível na vida, mas há um fator determinante que é a força de vontade e a paixão”.

O gosto já o tinha, a paixão veio com o controlo do barro. Pela sua história, Luís Pedras é mais do que um mestre oleiro. É um artista que não se limita a repetir gestos e formas moldados por gerações de oficiais da mesma arte.

Luís Pedras reinventa e cria. Decora as roncas com tintas por ele feitas, acrescenta formas, dá-lhes personalidade e o seu trabalho é reconhecido na cidade. “Sinto que as pessoas me acarinham e existe uma certa simbiose entre o que eu faço e a cidade”.

Um espaço especial

A olaria de Luís Pedras é daqueles locais que não se deve perder em Elvas. Não apenas pela sua arte e pela boa conversa que proporciona, mas pelo espaço em si. Luís trabalha no castelo, num espaço octogonal e abobadado que as pedras da muralha escondem mas que o branco que debrua a grande porta ogivada permite descobrir.

Roncas de Elvas são membranofones de percussão
Roncas de Elvas

Rei Jesuino, historiador, explicou-nos que o espaço é um acrescento do século XVI ao castelo medieval. “É uma espécie de adaptação do castelo para a pirobalística feita em 1530/40. É um cubelo ligeiramente octogonal onde era colocada pequena artilharia que podia bombardear em redor”.

O passado bélico da olaria já não se sente. Lá dentro, o espaço é branco e o grande teto abobadado dá-lhe uma dimensão de encantar, quase litúrgica. “Este é um local muito interessante e cheio de energia, que proporciona uma sensação de equilíbrio”, diz o oleiro. Num dos nichos da parede, um altar budista acrescenta-lhe uma dimensão mais espiritual. Mas Buda convive aqui com os bustos de Cristo moldados pelo oleiro, com as roncas, as esculturas e os quadros deste artista que é, fundamentalmente, um moldador de sentimentos que junta o barro às palavras e que tem já dois livros publicados de prosa poética.

Do Oriente às roncas

Luís Pedras não esconde o fascínio que lhe provoca o Oriente e as influências que experiências na Tailândia e na China trouxeram para as suas obras. Ainda recentemente fez um workshop de olaria na China. “Gostei muito de transmitir e também de aprender”, confessa, para logo de seguida contar: “No Oriente, as rodas dos oleiros giram no sentido dos ponteiros do relógio, o que faz com que trabalhem fundamentalmente com a mão direita, enquanto que no Ocidente o fazemos com a mão esquerda”. Uma diferença que se explica pela cultura, uma vez que em toda a Ásia a mão esquerda é considerada impura. “Disseram-me que a energia da cerâmica ocidental é diferente, mas interessante”.

A energia é tema recorrente deste oleiro que lembra que a sua “arte faz conjugar os quatro elementos primordiais do Universo. A terra que é o barro, a água para o moldar, o vento para o secar e o fogo para o cozer”.

E é essa energia que Luís Pedras também sente quando começa por amassar o barro, prepara a péla e se senta na roda do oleiro para criar as suas peças, num trabalho que já o levou até ao Museu Nacional de Etnografia para restaurar as roncas que lá estão em exposição.

“Faço as roncas com muito entusiasmo e paixão porque traduzem um pouco a nossa entidade – afirma – Julgo que estou a contribuir para a difusão da nossa cultura, da nossa identidade e da nossa tradição”.

Na olaria estão as pequenas roncas, mais finas para os homens, bojudas para as mulheres, de som algo estridente. Mas também as maiores, as mais trabalhadas e decoradas e de som cavo e profundo. Na olaria de Luís Pedras fazem-se os instrumentos que no Natal se voltarão a ouvir nas ruas de Elvas.

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