Regaleira: aqui nasceu a Francesinha
Não se pense que vamos aqui desvendar grandes segredos, que os da Francesinha estão guardados a sete chaves num cofre. Mas esta é a história de uma sanduiche que nasceu num restaurante no centro da cidade, rapidamente ganhou foros de alforria, espalhou-se e hoje é um dos dois símbolos gastronómicos do Porto.
Quis o acaso que António Passos fosse um dia a França e lá conhecesse um barman. É graças a este encontro fortuito que a Regaleira entrou para a história da cidade. A história é-nos contada por Francisco Passos, 27 anos, um dos sócios do restaurante: “Em França, António Passos descobriu um dia um barman num hotel, achou-o extraordinário e convidou-o para vir trabalhar com ele”. O barman era Daniel David da Silva, um homem que tinha saído de Terras de Bouro à procura de melhor vida.
Daniel começa a trabalhar na Regaleira e, inspirado pela francesa “Croque Monsieur” resolve criar uma sanduiche nova, aproveitando as carnes e os fumados portugueses e inventando um molho de sabor forte e picante. Estávamos em 1952.
“A história do nome também é muito interessante. O senhor Daniel David da Silva era um mulherengo e diz-se mesmo que gastava as gorjetas que recebia em França para ir para os autocarros ver as mulheres, que eram mais elegantes e bem vestidas do que as portuguesas da altura e ele ficava doido com aquilo. Por isso, quando fez o molho forte chamou-lhe Francesinha porque as francesas são picantes”.
Está desvendado o primeiro dos segredos. Quem conta a história é Francisco Passos, um criminólogo de 27 anos descendente dos fundadores da Regaleira e que em 2014 assumiu com o irmão a gestão do restaurante.
A Francesinha original
A receita original da Francesinha ainda é a que hoje se serve na Regaleira. Em vez do pão de forma, é servida com o pão bijou de cinco quinas. Depois, leva uma fatia de queijo, salsicha e linguiça frescas, uma fatia de perna de porco assada e uma segunda fatia de queijo. Por cima do pão é colocado queijo que vai a gratinar. Esta é a verdadeira francesinha.
Já quanto ao molho, Francisco Passos explica-nos a receita: “leva um pouco de cerveja, um pouco de tomate, malagueta, mais um bocado disto e um pedaço daquilo…”, afirma, com um sorriso nos lábios, para rematar: “quando provar, tente descobrir os ingredientes”. Não o conseguimos, como é evidente.
A verdade é que poucos conhecem a receita original. “O segredo do molho foi passado pelo inventor ao sr. Augusto e este passou-o ao sr. Alberto que é hoje quem o faz. São poucas as pessoas que conhecem a receita na sua totalidade e ela é guardada num cofre. O molho começa a ser confecionado na cozinha e é acabado na sala. Os que estão na cozinha não sabem o que se passa no balcão e os que estão no balcão não sabem o que se passa na cozinha.”
Equipa do Leixões S.C. nos anos 50
O molho à Leixões
Na sua confeção, o molho da Francesinha é picante, ou não fossem -para Daniel David da Silva – as francesas picantes. Mas se na Regaleira se pedir molho à Leixões, ele é servido extra-picante.
Conheça a história do molho à Leixões, contada por Francisco Passos:
Na Regaleira, o molho pode ser servido com mais ou menos picante. “Temos uma versão para as crianças, sem picante, mas a Francesinha é picante na sua confeção e até pode levar extra-picante. Sendo-se apreciador de muito picante, só se tem de pedir uma “à Leixões”.
Chegados a este ponto, impõe-se a pergunta: então como é que a Francesinha se popularizou? A história, uma vez mais é simples. “Houve um amigo da casa que ainda nos anos 50 pediu o segredo do molho e devidamente autorizado levou-o para o café Mucaba, em Gaia, que ainda existe mas noutro sítio”. A partir daí foram nascendo cópias mais ou menos inspiradas.
Não foi Daniel David da Silva quem foi abrir o Mucaba, ao contrário do que é muitas vezes referido. O criador da Francesinha trabalhou na Regaleira até se reformar, voltando depois a Terras de Bouro, onde passou os últimos anos da sua vida.
Em alguns sítios “fazem-se excelentes francesinhas, mas a única verdadeira é a da Regaleira”, afirma Francisco Passos, para quem é um orgulho que a sanduiche se tenha espalhado, primeiro pelo Porto e depois pelo país todo.
É por isso que as outras Francesinhas não são consideradas concorrência. “Somos convidados para todos os festivais, porque a origem do prato é consensual, mas nunca vamos a nenhum. É aqui que se faz a verdadeira Francesinha”, mesmo que outros se possam orgulhar de ostentar cartazes a dizerem que “são as melhores”.
“Muitas vezes dizem-nos que devíamos ter registado o molho, mas ainda bem que não o fizemos, porque assim estamos na história do Porto, o que é uma honra e um orgulho”. Todos os dias, pela manhã, “há mais de cem pessoas que entram pelo restaurante porque fazemos parte dos roteiros turísticos e os guias trazem-nos cá”.
E sempre que é pedida, a história do nascimento da mais conhecida e apreciada das sanduiches portuguesas é contada. “A maior parte das vezes, são os empregados que a contam e as pessoas ficam contentes por estarem no local onde a Francesinha nasceu”. É por isso que a Regaleira está a começar um pequeno espaço expositivo sobre a história do pitéu e do próprio restaurante. “Muitas vezes as pessoas – mesmo os estrangeiros – chegam cá porque se informaram e sabem que foi aqui que a Francesinha foi criada, mas estamos à procura de mais fotografias para que lhes possamos dar mais contexto”.
Uma boa notícia! Três anos depois, a Regaleira voltou a abrir. Os fãs da francesinha já podem voltar à Rua do Bonjardim (abriu na porta ao lado do espaço anterior), provar a melhor sandwich do mundo e reconhecer muitos dos empregados, uma vez que quase todos se mantiveram na casa.
Passado e futuro da Regaleira
A Regaleira nasceu em 1935 no edifício da Rua do Bonjardim – onde ainda hoje se encontra – pela mão de Abrantes Jorge e António Passos. “É um dos mais antigos restaurantes do Porto”. Abrantes Jorge era um homem com vários hotéis na cidade. Com o seu genro António Passos decidiu abrir um restaurante, não se sabendo quem desafiou quem.
Foi António Passos quem, com a sua mulher Lurdes, ficou à frente do restaurante. “Ao princípio, a Regaleira era um restaurante muito seleto, só cá vinha a alta sociedade portuense. Mas em 1950, decidiram que devia ser mais aberta e remodelaram o espaço”, conta.
Dois anos depois, Daniel David da Silva é contratado e inventa aquela que décadas depois viria a ser considerada uma das melhores sanduiches do mundo. “Ao princípio, a Francesinha era um prato servido ao lanche, com um pequeno copo de sumo de frutas para acalmar o picante. Só mais tarde é que começou a ser servida às refeições”, afirma Francisco Passos.
A Francesinha tornou a Regaleira mais popular e sem mãos a medir. Ocupado com os outros negócios familiares, António Passos deu sociedade a dois dos empregados da casa, Manuel Ferreira e Augusto Marinho. Ainda hoje, apesar de com saúde já muito debilitada, continuam a ser sócios da nova geração da família Passos. “É uma pena que o sr. Manuel não esteja aqui hoje, porque ele tem muitas histórias e é uma personagem muito gira, é um verdadeiro tripeiro e o rosto da Regaleira”, lamenta-se Francisco Passos.
Francisco e o irmão herdaram a Regaleira em 2007, mas só há ano e meio é que pegaram no negócio. “Resolvemos avançar não só pelo negócio, mas pela história e pela família. Aqui há uns tempos o restaurante passou por uma fase menos boa, mas agora está bem. Conseguimos chamar mais gente e recuperar os clientes mais antigos”.
A casa foi recentemente alvo de remodelação, tendo-se modernizado sem perder a patine deste que é um dos mais antigos restaurantes do Porto. Houve pouco mais que pinturas na sala principal, as casas de banho sofreram uma profunda remodelação e até o letreiro de neon à porta foi restaurado.
O segredo para o renascimento é simples: “o nosso objetivo é adaptarmo-nos aos tempos, mas sem descaraterizar a casa. É por isso que ela mantém este aspeto mais antigo e é também por isso que os empregados já têm todos muitos anos de casa e que já temos aqui a trabalhar pessoas que são filhos deles. Às vezes dizem-nos para irmos à escola de hotelaria e trazermos gente nova, mas não é isso que queremos. Queremos manter o pessoal e formá-lo, porque eles sabem e são a Regaleira”.
Francesinha 5 estrelas
Provámos e gostámos. A Francesinha da Regaleira continua a fazer jus ao seu criador, Daniel David da Silva. O molho é espesso e muito saboroso e os ingredientes continuam a ser os mesmos de sempre e de boa qualidade.
Quisemos a Francesinha como mandam as regras, em pão bijou de cinco quinas. Eu pedi o molho à Leixões e o Alfredo Beleza ficou-se pelo tradicional. Para acompanhar, pedimos batatas fritas que são feitas na casa, às rodelas e onduladas, mas grossas. “Continuamos a fazer as batatas como antigamente. Não são como as do leitão, finas, mas grossas para que possam aproveitar o molho”, explica Francisco Passos.
Muitas vezes, com o passar dos anos os restaurantes acabam por se desleixar na confeção de pratos que lhes trouxeram a fama, mas a Regaleira soube recuperar o esplendor da Francesinha e esta é das melhores que já comemos.
A diferença começa logo pelo pão que envolve a sanduiche. O pão bijou de cinco quinas não empapa todo como o de forma e mantém o seu sabor. As carnes são muito boas e na boca sentem-se os aromas que lhe são emprestados pela lenha em que grelham. E isso faz toda a diferença.
Como curiosidade, refira-se que a Regaleira manteve-se fiel aos seus fornecedores e a salsicha e a linguiça frescas que entram no prato são compradas hoje no mesmo local onde o eram em 1952, a Salsicharia Leandro, no Bolhão. Também o pão é há décadas comprado na Padaria Taboense, hoje Infante Santo.
Até a malagueta essencial ao prato vem do mesmo produtor desde sempre. “Compramos desde 1952 toda a produção de um produtor de Mesão Frio e depois secamo-la aqui”. Mantendo-se fiel a quem ajudou a francesinha a tornar-se no prato ícone do Porto, a Regaleira honra esta história de sucesso.
(artigo atualizado com as obras de remodelação do restaurante e com a história da malagueta).