Museu Bordalo Pinheiro: um centenário irreverente

Não se pense que este é um museu para se percorrer de olhar sisudo e entendido. Aqui, somos surpreendidos pelo humor e mestria do traço de Rafael Bordalo Pinheiro. O Museu Bordalo Pinheiro já é centenário mas recomenda-se. A discreta casa branca do Campo Grande transborda da irreverência de um dos mais importantes artistas do século XIX português.



Bordalo jovem a fazer o manguito
Um manguito bordaliano

Onde quer que seja o seu Panteão, são poucos os artistas que se podem gabar de não ter caído no esquecimento um século depois da sua morte. Rafael Bordalo Pinheiro faz parte desses eleitos e não apenas perdura na memória coletiva como mantém uma atualidade desconcertante.

João Alpuim Botelho destaca a modernidade da obra de Bordalo: “Há um enorme talento, uma obra continuada ao longo de décadas com uma grande capacidade de intervenção política e social”.

Razões que fazem de Bordalo o primeiro cartoonista moderno. Para o diretor do museu, o artista denota “um enorme talento de desenhador e comunicador. Foi precursor de soluções que hoje conhecemos da banda desenhada, como as que indicam movimento ou o colocar personagens que se portam mal fora da esquadria do desenho, como se estivessem de castigo”.

“Há um enorme talento, uma obra continuada ao longo de décadas com uma grande capacidade de intervenção política e social”

A sátira política de um autor apenas comprometido com a liberdade da crítica que sendo republicano era, por vezes, olhado de lado pelos republicanos e fazia os monárquicos esperarem com medo o próximo número dos seus jornais. Bordalo não poupava ninguém e num número de dezembro de uma das suas publicações pediu desculpa aos visados pela sua crítica, ao mesmo tempo que prometia que “para o ano será pior”.

O Zé Povinho

E, além do mais, há o Zé Povinho. A figura que simboliza o povo português nasceu da pena de Rafael Bordalo Pinheiro e rapidamente ganhou a rua. Mas o que Bordalo desenhou está longe do homem barbudo que faz um manguito a quem quer fiado, que se popularizou nas tascas de todo o país.

O Zé Povinho era uma figura rural, analfabeta e boçal que nunca percebia bem o que lhe estava a acontecer. Foi assim desde 12 de junho de 1875, dia em que pela primeira vez apareceu nas páginas do “A Lanterna Mágica”, um dos primeiros jornais que fundou.

O regime mudou, os atores são outros, mas a crítica de Bordalo continua plena de atualidade. No dia anterior ao do padroeiro lisboeta, as crianças faziam altares, os “tronos”, e pediam “um tostãozinho para o Santo António” que, evidentemente, ia para os seus próprios bolsos. No traço de Bordalo, quem pede é o ministro das Finanças sob o olhar atento do ministro das polícias e, no altar, o Santo António é Fontes Pereira de Melo, o primeiro-ministro, e o menino não é outro senão o rei. Mudem-se as personagens e a sátira podia ter sido desenhada nos dias de hoje. É essa a magia de Bordalo.

O Zé Povinho aparece pela primeira vez a 12 de junho de 1875, véspera de Santo António
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A popularidade da figura é quase imediata. João Alpuim Botelho lembra que poucos anos depois do nascimento do Zé Povinho estreava o espetáculo homónimo de revista à portuguesa e que “nas tascas de Lisboa partilhavam-se os jornais com os desenhos de Bordalo”, o que explica que tenha ganho o imaginário popular.

Ao longo da sua vida, Rafael Bordalo Pinheiro fundou e dirigiu uma série de jornais que utilizava para publicar os seus desenhos e como exercício de liberdade. O mais importante de todos foi “O António Maria”, que teve duas séries, mas também “A Lanterna Mágica”, “Os Pontos nos ii” ou “A Paródia”.

Tudo isto se pode ver no Museu Bordalo Pinheiro, o primeiro museu português dedicado por inteiro à obra de um artista. “Há outros mais antigos mas, dedicado à obra de um único artista, este é o primeiro em Portugal”. Bordalo foi o primeiro a ter um museu inteiramente dedicado à sua obra. O museu abriu portas em 1916, 11 anos após a sua morte.

E aqui há espaço para as outras facetas do artista, nomeadamente para as suas peças de faiança.

Faiança de Rafael Bordalo Pinheiro

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Uma vez mais, João Alpuim Botelho toma a palavra: “Rafael Bordalo Pinheiro não tinha nenhuma ligação à faiança ou às Caldas da Rainha, mas quis fazer a fábrica como uma espécie de declaração política, mostrando que era possível haver em Portugal um desenvolvimento tecnológico de ponta com base nas nossas tradições e história. A razão de ter escolhido as Caldas da Rainha foi resultado de um estudo sobre qual o lugar com melhores barros e tradições barristas”.

Nascia assim a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha que, com um total de operários a superar a centena, empregava mais gente do que todas as oficinas e olarias da região em conjunto, e que nasceu logo como fábrica-escola com o intuito de formar as gerações seguintes de operários. Bordalo fazia louça utilitária, mas eram as peças artísticas que lhe ocupavam o espírito. E aqui, também, Rafael Bordalo Pinheiro mostrava uma sensibilidade e uma mestria na modelação do barro verdadeiramente únicas. Os seus pratos naturalistas, em relevo, são algumas das peças hoje expostas no museu. E lá está, uma vez mais, o seu lado irreverente. É exemplo disso o escarrador-agiota ou o penico do John Bull.

O penico Jonh Bull
O ultimato inglês de 1890

Ou Portugal desistia da sua pretensão aos territórios africanos entre Angola e Moçambique ou entraria em guerra com a Inglaterra. Em termos simples, foi este o ultimato feito pela Grã-Bretanha à coroa portuguesa a 11 de janeiro de 1890. Os ingleses deram 24 horas ao governo português para decidir, após o que o navio de guerra Enchantress largaria de Vigo em direção ao Tejo. O Conselho de Estado reúne-se nessa noite e cede.

Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens tinham feito a travessia africana da costa à contra-costa (ou seja, de Angola a Moçambique) poucos anos antes e a Sociedade de Geografia de Lisboa cunhou o célebre mapa cor-de-rosa, que estendia a esfera de influência portuguesa aos territórios entre as duas colónias.

Mas os ingleses tinham outros planos. Numa fase de grande expansão ultramarina, pretendiam ligar a Cidade do Cabo ao Cairo por caminho-de-ferro e as pretensões portuguesas colidiam com a sua agenda. Aproveitaram então um recontro do explorador Serpa Pinto com os Makololos a 8 de novembro de 1889, numa zona reclamada pela coroa britânica, para fazer o ultimato.

A demonstração de força britânica e a cedência do governo do novo rei português (D. Carlos I tinha chegado ao trono apenas 70 dias antes) provocaram uma comoção geral, com editoriais inflamados e manifestações de rua.

É neste contexto que Rafael Bordalo Pinheiro pela primeira vez põe o Zé Povinho a fazer o manguito e molda um penico com a forma de John Bull, a figura que representa a Inglaterra.

A inflamação do sentimento de orgulho nacional ferido é explorada pelos republicanos. É nesta altura que Henrique Lopes de Mendonça e Keil do Amaral escrevem “A Portuguesa”, entoada nas ruas com o refrão original: “contra os bretões, marchar, marchar”.

Sabia que as andorinhas que hoje povoam as paredes de muitas vivendas e moradias por este país fora saíram das mãos de Bordalo?

E sabia que foi em faiança que pela primeira vez o Zé Povinho deixou a sua atitude aparvalhada para fazer um valente manguito? Os destinatários da revolta do Zé Povinho foram os ingleses e a ira da figura acompanhou a comoção que se gerou em Portugal com o Ultimato Inglês de 1890 por causa do Mapa Cor-de-Rosa.

Uma personalidade fascinante

É impossível dissociar a obra de Bordalo do próprio artista, afirma o coordenador do Museu Bordalo Pinheiro. Sem fortuna própria, o artista conseguiu financiar vários jornais para publicar a sua obra e mesmo a fábrica de faiança. Isso explica-se em parte pela sua personalidade magnética.

“Bordalo vivia ao pé do Chiado, no largo que hoje tem o seu nome, e tinha lugar no São Carlos. Conta-se que muitas vezes chegava atrasado aos espetáculos porque no curto trajeto parava a conversar com amigos”.

A sua alegria de viver e o seu entusiasmo eram célebres e granjeavam-lhe acesso a todos os banquetes e eventos que se realizavam. “Quando ia jantar ao Tavares nunca pagava a sua conta, porque atraia tanta gente – que levava ou que queria conviver com o artista – que a sua refeição pagava-se a si própria”, conta João Alpuim Botelho.

Rafael Bordalo Pinheiro - desenho "20 Anos Depois"
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É essa alegria de viver, essa forma de viver mergulhado na sua época e essa liberdade intrínseca que fazem de Rafael Bordalo Pinheiro o cronista por excelência da segunda metade do século XIX lisboeta.

O seu humor e irreverência que não poupavam ninguém – nem o próprio – estão bem patentes nos desenhos e na faiança exposta no museu Bordalo Pinheiro onde, numa das salas, se mostram objetos que lhe pertenceram. E é aqui que encontramos uma camisa manuscrita e autografada pelo autor, que acompanha a condecoração da Legião de Honra (França), com que foi agraciado pela excelência da sua decoração do pavilhão português da Exposição Universal de Paris, em 1889.

camisa autografada de BordaloDiz a camisa, em escrito pelo próprio punho de Bordalo: “camisa do Triumpho / com que eu fallei com o  / Snr. Carnot e com que fui festejado pelos / francezes e patrícios 9 de Julho 1889”

A história do museu

A própria história da criação do museu é interessante. Ernesto Cruz Magalhães, um poeta, panfletário e humorista, enviuvou. Querendo ajudá-lo a manter-se ativo, e sabedores do interesse que tinha pelo trabalho artístico de Bordalo, os amigos incentivam-no a colecionar as peças saídas do génio do artista que admirava, mas com quem nunca tinha privado.

Museu Bordalo Pinheiro, no Campo Grande

A coleção começa a ganhar forma, de tal modo que, quando se decide a construir uma casa nova para não conviver com a memória da sua mulher, projeta o edifício para ser também um museu.

A casa do Campo Grande tem uma porta que dá acesso direto ao primeiro andar, onde três salas são construídas com iluminação zenital, ou seja, com claraboias no teto a proporcionar a luz natural. Esta particularidade faz com que este tenha sido o primeiro a ser instalado num edifício pensado de raiz para ser museu. O edifício ganhou uma menção honrosa nos mais importantes prémios de arquitetura da capital, o Prémio Valmor. O Museu Bordalo Pinheiro abriu portas em 1916, em plena 1ª Guerra Mundial, e a receita de bilheteira revertia integralmente para a Cruz Vermelha.

Só que, entretanto, Cruz Magalhães tinha estabelecido uma excelente relação com o filho de Bordalo, Manuel Gustavo, e é desta amizade que provém grande parte do acervo do museu, nomeadamente as peças da vida do artista.

Rapidamente, Cruz Magalhães foi aumentando a área expositiva. Viúvo e sem descendência, o colecionador e filantropo deixou a casa e a coleção à Câmara Municipal de Lisboa em 1924. No centenário da morte de Bordalo Pinheiro, o museu foi remodelado. O edifício original é totalmente dedicado à exposição das peças e a galeria que entretanto tinha sido construída permite um maior dinamismo da exposição. É que apenas um décimo do espólio do Museu Bordalo Pinheiro é exibido na exposição permanente.

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